quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O verão chegou!

* Levantei um pouco antes das seis, e fui ao varal pegar um short que estava lá. No prédio de trás, luz acesa, os bombeiros fazendo suas camas. Me deu pena, por causa dum clichê que há na minha cabeça: velho é que acorda cedo, a moçada gosta de dormir até mais tarde...

* Mais tarde, quando fui estender a roupa lavada, meu olhar passa rapidamente por ali e me ponho a rir: pra confirmar meu julgamento anterior, uma toalha de banho com estampa de brinquedos pendurada numa corda, perto da janela. Crianças, crianças, mesmo.

* Quando a gente gosta do que ensina, aprende mais que os alunos... Ensinava a observar, e acho que quem mais aprendeu fui eu mesma... Rápida mirada, e faço retrato da pessoa que observo... No primeiro andar ali são os bombeiros. Acima deles, uma família. E a guria que ocupa o quarto que dá pra área daqui é supercaprichosa, dá até gosto ver.Tá sempre arrumando alguma coisa, sem no entanto ser compulsiva, como se arrumasse quando deixa de usar, ou quando ela mesma desarruma.Acertou seu ritmo e seu método, e funciona bem dentro deles. E tem horários de abrir e fechar as persianas, conforme o andamento do sol...

* Continuo terrível com as datas. Me ligaram há pouco da clínica: a senhora tem consulta hoje com a dra.Fulana, às 13:50. Me pus a rir: eu tava certa que seria amanhã, ainda bem que ligaste! Irei, irei!

* Trabalhei tempão em "Coisa Feita", de João e Aldir, enchi páginas de anotações, mas o texto, nada! Nem a fórceps! Ouvi todas as diferentes gravações que João fez dela, incluindo a do DVD, e nada! Me queixo pra amigo lajeano, e ele ri da minha cara: tás parecendo touro marrão! Para de dar marrada na parede, e passa pra outra, depois voltas pra essa. Sem estresse. Não é que ele tem razão? Tou em "Profissionalismo é isso aí", e tá indo legal... Sou tão idiota, às vezes! E adorei ser chamada de touro marrão, expressão que os avós serranos usavam, mas eu não ouvia há tempos.

* Vou redigitar as entrevistas que fiz com João, porque não tenho em arquivo. E releio. Como João é bom, gente,'cês nem imaginam! Bom demais, bom demais, merecedor de cada grama de admiração que tenho por ele. Tou louca pra fazer entrevista nova, pensando no que pode vir, nós dois mais maduros, mais experientes e mais sábios...

* Calor, calor,pernilongos mil, as donas pernilongas serenatando e mordendo, atrás de seu ciclo reprodutivo. Mas Sérgio da Costa Ramos diz que vai ser verão de chuva. Leio e dou risada: não sei se é real, ou apenas desejo dele, pra se livrar da terrível invasão estival!

Crônica do Rubens da Cunha

OS ANIMAIS-TEXTO

Puxa um livro ao acaso da estante: “Jardim Zoológico”, de Wilson Bueno. Abre ao acaso uma página: 73. Lê. Concentra-se no mundo imaginário de Bueno, na linguagem poética. Visiona “os Zíngaros & os Zongues”, os animais inventados por Bueno para ocupar esse jardim zoológico.

Os animais podem ser inventados, mas, ao serem escritos e enjaulados na página 73, tornam-se mais reais do que leões ou elefentes. Engraçado isso: personagens, cenários, ideias, versos, tudo que ser cria em literatura fica preso na página, igual a um jardim zoológico. Entramos, às vezes, num livro e o percorremos inteiro, do começo ao fim, libertamos alguns animais, deixamos outros presos no esquecimento.

Em outros livros, sobretudo os de poemas e de narrativas breves, podemos visitar apenas um texto, observá-lo mais atentamente, decidir se vamos trazê-lo conosco ou vamos deixar ali, eternamente, naquela página.

Todo leitor tem consigo pelo menos uma dezena de animais-texto de estimação, libertos de algum livro. São animais que o protegem numa situação incômoda de tristeza, ou que o tornam inteligente quando precisa aparentar inteligência. Leitores são seres frágeis, estão sempre à caça de novos textos.

Não que os velhos não sirvam mais, mas uma reserva é sempre bem vinda, e mesmo o mais genial texto gasta-se com o tempo, vide o “ser ou não ser” de Shakespeare, talvez o animal-texto mais usado no mundo. Enfim, todo clichê já foi uma frase original.

Visita mais um animal de Wilson Bueno: página 33. “Os dicéfalos”, animais com duas cabeças que habitam as geladas florestas da Islândia. Duas cabeças? E se tivéssemos realmente duas cabeças? Ou mais cabeças? Talvez por isso os leitores fazem dos textos que eles libertam dos livros suas outras cabeças.

Os textos falam, pensam, sentem pelo leitor, e reciprocamente o leitor também fala, pensa e sente com os textos. É um intercâmbio, um intermédio entre o leitor, bicho de uma cabeça apenas, e as infindas cabeças-texto que ele conseguir libertar, ou melhor, que o leitor conseguir prender a ele mesmo, afinal cada citação, cada lembrança de um texto nada mais é do que amarrá-lo um pouco mais sobre nosso corpo, aprisioná-lo um pouco mais ao lado de nossa cabeça original. Todo leitor, mais do que um dicéfalo, é um pluricéfalo.

Página 27. “Os nácares”. Animais que vibram na ausência da luz. Foram vistos por Jorge Luiz Borges, graças à cegueira dele. O leitor também precisa ser um cego para resgatar alguns animais-texto. Precisa não lhes ver a procedência, não lhes ver os espinhos e as agruras. Todo leitor sabe que o melhor animal-texto é aquele que o fere, seja por raiva, seja por beleza, mas é sempre um ferimento profundo e viciante, por isso o leitor precisa de cuidado, libertar um animal-texto feroz sempre de noite, um de cada vez, amansá-lo com pouca leitura, caso contrário será engolido pela força voraz do animal-texto recém liberto e zaz: foi-se mais um leitor em direção à luz.

Leitor bom é leitor dentro da escuridão, leitor em busca da luz. Com a luz encontrada, todas as jaulas são abertas e tudo se acaba em nada.

(Anexo, AN, 4/11/2009)

Crônica do Amílcar Neves

Morcegos e chocolate

É uma situação constrangedora quando preciso falar aqui de certos assuntos sensíveis, polêmicos ou delicados, abordar ideias tidas por ofensivas a quem delas discorda por motivações políticas, religiosas ou futebolísticas. Esse negócio de haver crianças na sala só complica mais as coisas. Como retirá-las em tempo hábil se nunca se sabe quando alguém vai pegar o jornal e abri-lo precisamente nesta página? Com a televisão é mais fácil, basta colocar a advertência no ar e a responsabilidade pelo que elas virem a seguir passa automaticamente a ser dos pais. O jornal não dispõe de tal recurso.

Pior: o jornal trata da palavra escrita, e esta é muito mais ameaçadora e insidiosa do que a palavra falada, do que mil imagens. Jornais, assim como livros, submetem os seus autores a constante sobressalto: quando será que alguém se sentirá atingido, profundamente ofendido por uma palavra ou uma frase e entrará com um processo judicial pedindo a censura sumária do que foi dito – melhor: do que foi escrito –, exigindo sua retirada incondicional do mundo das coisas acontecidas, e, como castigo adicional, uma polpuda indenização por danos morais? Isso pode suceder mesmo muitos anos depois que se deram as coisas relatadas.

Há tribunais que concedem tanto a censura quanto a indenização.

Imagino que, a esta altura da crônica, as crianças tenham abandonado o texto, possivelmente o próprio jornal, desinteressadas já desta conversa que lhes parece que a nada levará. E isto fi-lo de propósito, para despistar-lhes a atenção. O problema é que, atingido este intento inicial muito importante (para não ter problemas com o editor do caderno nem com as penas da Lei), percebo que se esvai irremediavelmente o meu precioso espaço e sequer, afora o título posto no topo, entrei no assunto.

Queria dizer-lhes, agora que, a bem dizer, as crianças deixaram a sala, que o chocolate causa quatro vezes mais prazer do que um beijo, especialmente se o deixarmos derreter lentamente sobre a língua (vale para ambos, parece).

E os morcegos? Bem, os morcegos asiáticos de uma espécie frutívora fazem sexo oral para prolongar a relação, ou seja, supõe-se que usem muito a língua para falar entre si de sexo (o tal de sexo oral) e, assim, incrementar a relação social entre os indivíduos da colônia.

Comprova-se, assim, que sempre é prudente empregar a língua com moderação.

(Variedades,DC,4/11/2009)

terça-feira, 3 de novembro de 2009