sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Crônica do Rubens




A VIDA É BREVE

Nada se salva quando suamos desgraça.” Esta frase é do romance “A Vida Breve”, do uruguaio Juan Carlos Onetti. Trata-se de um romance paradigmático do século 20, com personagens intensos, que transitam entre relacionamentos, escolhas erradas, traições.

A frase carrega em si uma verdade explícita, que, no mundo contemporâneo, poderia ser facilmente abduzida por um manual qualquer de auto-ajuda e se tornaria mais um clichê pró-felicidade 100%. É evidente que nada se salva quando suamos desgraça, mas também nada se salva quando suamos felicidade, fé, ódio, amor, quer dizer, quando nos reduzimos a uma coisa só, a um campo de visão apenas, quando elegemos uma verdade única e imutável.

Tenho visto muito isso ultimamente: gente cada vez mais escudada por uma ideia fixa, seja negativa ou positiva. Já diz o ditado: quem tem um filho não tem nenhum. O mesmo se pode dizer das ideias, dos sentimentos, dos caminhos escolhidos.

Penso que o suor humano deva ser misturado, deva ser vitimado pela dúvida, pela inconstância, pela alegria tanto quanto pelo desespero, pela angústia, enfim, somos mais completos quando somos múltiplos, “umasómultiplamatéria”, para usar a expressão de outra grande: Hilda Hilst.

Dentro do romance “A Vida Breve”, esta frase vem acompanhada de uma interessante teoria do personagem que a pronunciou. De acordo com ele, quando suamos desgraça é preciso que a gente queime toda a roupa velha. Tem de queimar, destruir, não pode doar, pois se a roupa for passada para outro ela “arrastará seu novo dono e nos perseguirá”, a roupa retornará a nós para devolver seu veneno.

O personagem recomenda também que, além de queimar a roupa, é preciso tomar um banho bem quente e beber um copo de sulfato de magnésio, o famoso “salamargo”, dormir e pronto: no outro dia, “tão novo como um recém-nascido, tão alheio a seu passado como o monte de cinzas que deixa atrás de si”.

Não há dúvida que se empenhar em conseguir ser menos obcecado por algo único passa por queimar tudo, largar velharias, abandonar dogmas, desistir de sonhos, experimentar novas aberturas. Claro, nem sempre precisa ser tão radical. Pode-se abrir uma nova porta sem necessariamente fechar a antiga, mas é preciso perceber quando a velha porta aberta nos fecha novos caminhos. Enfim, é sempre algo angustiante, algo que nos tira a certeza.

Os personagens de “A Vida Breve” vivem dentro desse universo de agarrar-se ou desgarrar-se, apegar-se ou desapegar-se. Talvez, por isso, seja um romance tão atual, pois retrata os avessos e os direitos da humanidade, ao mesmo tempo em que é também um romance difícil, pois estamos cada vez mais inseguros, mais necessitados de portos seguros, de visões e conceitos únicos.

Está cada vez mais difícil ser “a metamorfose ambulante” do velho Raulzito, mas precisamos tentar: ideias únicas e roupas velhas já levaram o mundo a grandes guerras e grandes violências. E como prenuncia tão bem o romance de Onetti, a vida é breve para ficarmos presos a ninharias. Temos é que viver a largueza da brevidade da vida.

(recebida por email)

Crônica do Olsen





A DOR DOS OUTROS

A vida em condomínios abriga algumas peculiaridades que muitas vezes passam despercebidas dos moradores. O fato de muitas ações serem repetidas diariamente produz uma rotina imperceptível. Assim, é quase certo que encontraremos as mesmas pessoas todos os dias. Algumas mais, outras menos.

Com as crianças, tais particularidades são mais arraigadas. Elas praticamente crescem juntas, meninos e meninas em turmas diferentes. Usufruem da mesma piscina, praticam esporte na mesma quadra, usam o salão de festas para reuniões sociais e desfrutam da churrasqueira com os adultos ou de maneira independente.

Com o passar do tempo, os pais se tornam amigos e passam a ter, inconscientemente, certa responsabilidade pela população miúda. As crianças se conhecem e frequentam os apartamentos das outras e até dormem na casa de uma ou de outra como se o ato representasse uma pequena aventura.

Você só entende o significado disso quando, passados 15 anos, recebe o telefonema de um filho afirmando: “Pai, o Lucas morreu”.

Segue-se um silêncio e, antes que você possa dizer alguma coisa, ouve “o Sky (apelido carinhoso do garoto, provavelmente tirado do filme ‘Guerra nas Estrelas’) era um dos meus melhores amigos”.

Então, cai a ficha e, antes de encontrar algo para dizer, você se lembra deles brincando juntos lá no prédio onde moravam, jogando bola no pátio, ocupando o tempo com o “Banco Imobiliário”, jogando canastra, xadrez, os brinquedos eletrônicos e, depois, mais adultos, a descoberta e paixão pela música. Cada um escolhendo um instrumento e ensaiando.

É, seguem-se todas aquelas manobras pouco sutis de conduzir a aparelhagem para cima e para baixo, no carro de um ou de outro dos pais, da escolha de um lugar para ensaiar, da negociação com a vizinhança. Afinal, daquelas tertúlias musicais bem que poderia sair um virtuose, quem sabe alguém que ficará famoso um dia e poderão dizer: “Puxa, essa gurizada ensaiava lá perto de casa, mas sempre botei fé que dali sairia alguma coisa boa. E não é que eu estava certo!”

Soube que o Lucas tinha apenas 30 anos, não fumava e não bebia, havia casado recentemente, dedicava-se inteiramente à música. Acabara de ganhar uma bolsa para fazer um mestrado em música e a banda dele iria tocar no fim do ano na França. Ele estava animado, no auge do entusiasmo que poderia representar uma promissora carreira. E aí, um enfarte põe fim ao sonho.

Ironia, triste destino, quando nos aproximamos do sonho, ele se esfuma, evapora, some. Permanece, então, a história da luta que foi para buscá-lo e isso justifica uma vida inteira, ainda que se alie à tristeza, a solidão, as dores do que se perdeu pelo caminho.

Meu filho está chorando ao telefone. Imagino o que significa aquela tragédia para todos os amigos deles, os pais do Lucas, Paulo e Gisela da Rosa e os irmãos, Tiago e Paola. O mundo desabando em cima de uma família e as forças do universo mostrando em todos os nossos poros o quanto somos pequenos e vulneráveis aos seus desígnios.

Penso nas “Meditações”, do poeta John Donne, quando diz “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade”.

A dor dos outros explodindo em significações e eu ali, mediocremente, pensando na eleição para uma academia de letras, deus meu, como um homem pode deixar-se corromper por tal papel?

Foi naquela hora, na tarde de terça-feira, que decidi não submeter mais o meu destino a uma minoria de homens de letras. E daí, já despido da glória passageira do Olimpo, como um mortal que acaba de descobrir a verdade essencial, solidariamente, chorei junto com o meu filho aquela perda humana que nenhuma lágrima poderia mais trazer de volta!

(recebida por email)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Crônica do Amílcar Neves



(Mulher lendo, de Pablo Picasso)



Ler. Para quê?


Ler um livro, para começar. Com todo o respeito pelos jornais, revistas e meios eletrônicos, ler, de verdade, é ler livro. Por mais que, democraticamente, se possa discordar desta posição.


Ler um livro de literatura, fique claro. Manuais técnicos, religiosos e de autoajuda são textos de consulta, não de leitura. Ler livro é ler literatura, apesar de se vender o peixe por aí embrulhado em folhas de livro.


Ler um livro de literatura de qualidade, esta é a questão. Nem tudo o que reluz é literatura. Ler livro de literatura é ler obra de qualidade estética e, claro, literária; o resto, me desculpem, é perda de tempo.


Então, invariavelmente, vem a pergunta: por qual razão, humanitária ou prática, haveria alguém de pôr-se numa tal confusão de escolher um livro, e que fosse de literatura, e que fosse de qualidade, para fazer essa coisa tão chata e enfadonha que é isso de ler?


Evidente: numa casa em que pai, mãe, tios e vizinhos param tudo - param de comer, de conversar, de se conhecer e até de amar - para se deixar hipnotizar por uma sequencia quase interminável de telenovelas (a sucessão de enredos sempre repetitivos só acaba na hora de dormir para ir trabalhar amanhã cedo), fica bem mais difícil para a criança e o adolescente descobrirem espontaneamente o prazer insuperável da leitura (de um bom e instigante livro de literatura).


O escritor peruano Mario Vargas Llosa dá a pista para uma resposta sensata à questão no livro Cartas a um Jovem Escritor:


“Sem dúvida, o jogo da literatura não é inócuo. Produto de uma insatisfação íntima com a vida como ela é, a ficção também é uma fonte de mal-estar e insatisfação, pois quem, através da leitura, vive uma grande ficção - como as duas que acabo de citar, a de Cervantes e a de Flaubert [o autor se refere, respectivamente, a Dom Quixote e Madame Bovary] - retorna à vida real com uma sensibilidade muito mais aguçada diante de suas limitações e imperfeições, inteirado por aquelas magníficas fantasias de que o mundo real e a vida de verdade são infinitamente mais medíocres do que os inventados pelos escritores. Essa intranquilidade frente ao mundo real que a boa literatura alimenta pode, em certas circunstâncias, traduzir-se também em uma atitude de rebeldia contra a autoridade, as instituições ou as crenças estabelecidas.”


Por isso os ditadores odeiam livros, quem os escreve e quem os lê.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Brincando de poetar




Já dizia Tio Patinhas
nos gibis de nossa infância:
vá cuidando dos tostões
que eles viram milhão!

Pra ver se isso funciona
tou cuidando dos beijinhos
pra ver se viram...
BEIJÃO!

Crônica do Felipe Lenhart







Escrever

Por que é difícil escrever? Por que as palavras teimam em escapulir de repente? Muitas vezes estão na palma da mão, adestradas, prestativas e corretas, prontas a pular para o teclado; em outras, ficam deitadas no nosso colo, de onde as pescamos como quem come pipoca no cinema, absortos no texto que flui diante de olhos incrédulos. Mas é fato: elas correm de nossa visão e fogem de nossas mãos como num feito de mágica. Nada entendemos. Uma hora estão aqui, saltitantes e ardendo, e num minuto desaparecem, sacanas. Sapecas e sacanas: os personagens perdem a fala, a descrição do ambiente fica incompleta. Ao mínimo descuido, danou-se: os que no papel falam e sentem e choram fogem para trás da folha em branco, zombam de nossa falta de atenção e se recusam a voltar. A sala, o quarto, a estação de metrô ou a agência dos correios viram lugares frios, sem cheiro e cor, sem vida e música. Por que diabos é tão difícil escrever?

Em certas noites, parece mesmo que a tela do computador debocha de nós. Ela fica fora de foco, o teclado dorme, o branco cega e o texto estaca. É duro quando as palavras, andarilhas do tempo e do espaço, entram em greve e pedem adequado uso e aumento de vocabulário. Porque puxamos da memória sempre as mesmas palavras. Aí, a revolta: erguem-se em armas os as e os is, deitam os emes de cabeça para baixo e tudo fica de pernas pro ar. No teclado, aperta o “d”, surge o “t”. São elas sabotando a máquina.

A situação pode piorar: as letras formam fileiras, braços dados, serifas unidas, em nome do idioma. Nestes casos, a César o que é de César: busca-se na estante um livro grande e empoeirado, recorre-se ao Aurélio. Ele sabe como negociar com os rebelados. Em minutos apresenta um termo novo, uma expressão em desuso e pronto, voltam a formar palavras e frases e parágrafos as letrinhas satisfeitas.

Resolvidas as questões do aumento e do uso adequado, respiramos fundo e seguimos em frente. Voltam a conversar os personagens, música soa no quarto do Joca. Música embala também a discoteca onde Joana dança, na fatídica noite do dilúvio bíblico que vai afogar a cidade inteira e ninguém sobreviverá a não ser Joana. São fábulas que as palavras nos proporcionam.

Pelo menos até amanhã, tudo certo. Mas no novo dia, nova crônica, as palavras novamente irão se rebelar, vingativas. Aí, repete-se o óbvio: por que é difícil escrever?

(Variedades,DC,19/10/2009)

domingo, 18 de outubro de 2009

Sou eu!



É uma ilustração da New Yorker, mas confesso que bateu aqui dentro...

Sou eu, né? Pensando com minha própria cabeça, escolhendo meus próprios caminhos,não me conformando com o que dizem, e indo atrás do que me satisfaça a curiosidade e me forneça uma explicação aceitável. Repetindo clichês por ironia, detestando gente carola e hipócrita, e gente que é estação repetidora do que está aí...

Daí que também se sentindo muito solitária, algumas vezes... Mas ADORANDO achar um igual! (Não são muitos, mas existem...)