sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Tiradas do Aldir Blanc






* "A esperança não é a última que morre, mas é a primeira que pega fogo."

* "A moça parou de fumar e ficou deprimida. Definhou, depois morreu. Para ser preciso: ex-fumou-se."
(qui nem qui eu!)

* "A grande maioria dos brasileiros vê o túnel do fim da luz."

* "Advertência: sou avô, mas não tô morto."
(só mudo o gênero).

* "Em Medicina, segunda opinião é aquela que faz você voltar correndo pra primeira."

* "Sete entre cada dez brasileiros têm medo de bala perdida. O enterro dos outros três foi ontem."
(Exagero, né, Aldir? Substitui 'brasileiros' por 'cariocas', que daí tá certo!)

(In-: Guimbas. Rio: Desiderata, 2008).

Crônica do Olsen

O GUARDADOR DE CARROS

Um dia qualquer, já faz muito tempo, ele apareceu. Foi surpreendente. Ninguém ali na rua tinha conhecimento daquele cidadão e tampouco do ofício que exerceria a partir daquela chegada, tão espantosa quanto abrupta.

Ele chegou, postou-se na calçada como se fosse um velho habitué, seguro de si. Passou a percorrer aquele caminho em frente aos vários restaurantes da região. No começo, foi para se assenhorear do espaço, como fazem os cães e gatos que delimitam o terreno do qual se apropriam, deixando claro a quem interessar que a área tem um dono.

Tentaram afugentá-lo dali. Parecia um corpo estranho, algo que precisava ser extirpado logo. Mas não deu certo. Na manha, como dizem por aí, ele foi levando. Por outro lado, se pensava, ele não iria ser persistente o tempo todo a ponto de se transformar em uma instituição.

Os dias foram passando, mas tão certo quanto dois e dois são quatro, pela manhã, perto do meio-dia, ele aparecia. Postava-se em frente, como que imbuído de uma missão, levava a sério o ofício. Cumprimentava todo o mundo.

Depois, mais atrevido, até insinuava um diálogo, embora para quem o visse de longe, desse a impressão de estar falando sozinho, porque ninguém parava para ouvi-lo. Ah, ele tinha um cacoete. Quando começava a conversar, abanava a cabeça para os lados como se estivesse espantando uma mosca. O gesto era acompanhado com um dos braços que era erguido a altura do pescoço e se movia na horizontal acompanhando a cabeça.

À medida que os sons saiam com dificuldade da boca, o nervosismo era acelerado e, com ele, os trejeitos, compondo uma coreografia de danados. Era poesia tirada de um dos versos de Augusto dos Anjos, um poeta de quem ele jamais ouvira falar.

Os anos também foram amontoando-se. Ele, que jamais faltou a um único dia ao trabalho, teria recebido todos os galardões caso trabalhasse em uma empresa tradicional. Seria um exemplo. Jamais uma doença ou outro motivo qualquer o afugentou do que ele considerava uma obrigação sagrada. Se não o conhecesse, diria que estava pagando uma promessa.

De certa maneira, quando se percebeu que a sua presença era inevitável, passou-se a ajudá-lo. Um dia, lhe dei de presente uma camisa da Lacoste. Era de cor azul-turquesa, xadrez e não sei o porquê, havia caído um pingo de água sanitária na parte posterior, algo quase invisível que me incomodava. Mas ele não deu pelo fato e passou a vestir aquela camisa todos os dias. Quase fiquei com remorso, afinal, era eu o culpado daquela constância. E ele sempre me dizia: “Obrigado, poeta”.

Ele está em frente da minha casa todos os dias. Ganha dinheiro honestamente. É pouco, mas ele sobrevive. Não deve favores para ninguém. Não depende de políticos. Não precisa fazer mesuras para adiantar o lado dele. Agora, também folga nas segundas-feiras, como quase todos os donos de restaurante.

Era torcedor do Palmeiras quando chegou. Mais tarde, alguém lhe deu de presente uma camiseta do Flamengo e ele se tornou ardoroso defensor das novas cores. Outro dia, o proprietário de um restaurante na vizinhança ameaçou de não lhe dar mais café se ele continuasse com aquela camiseta rubro-negra. Ele então, voltou – como amante apaixonado e arrependido – a torcer pelo Palmeiras, onde está até hoje. Flutuação de humor passageira à parte, parece natural quando acontece com os outros. Nós, os durões, não nos permitimos tais concessões.

Hoje pela manhã, antes de sair de casa, fiquei um tempo observando aquele cidadão, pacato, tranquilo, soberano em seus domínios, pouco mais de cem metros de calçada, nada parecia lhe tirar a serenidade. Acenei de longe para ele, fui retribuído com um largo sorriso e aquela expressão que já tinha virado rotina: “Tudo bem, poeta”. Com certa inveja, afastei-me. Se ele ao menos soubesse. Na verdade, o poeta era ele!

(Anexo,AN,16/10/2009)

A Super Salander




É muito raro os volumes de uma série manterem a qualidade à medida que se desenvolvem. O normal é irem decaindo, mas se ainda forem gostosos de ler, tá de bom tamanho.

Acabo de ler o terceiro do Millenium, de Stieg Larsson,A rainha do castelo de ar, e se o jornalista continua sendo o Super Blomkvist, a Lisbeth Salander, a mulherzica de metro e meio, com jeito de anoréxica, também vira super... e imortal.

Meio inverossímil a forma como conseguem antecipar e frustrar todas as jogadas de um fictício ramo da Säpo, a Polícia de Estado Sueca, ramo este que protegia o pai da Salander, o espião russo Zalachenko. Virou livro de espionagem, são muitos os James Bond suecos, mas é gostoso de ler à beça...

Para quem, como eu, teve que ficar de repouso por causa de (mais uma!) cirurgia dentária, uma boa distração!

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Uma crônica censurada

Esta crônica que Olsen fez pro AN não vai ser publicada amanhã.
Desconfio que não pelo conteúdo, mas pelo "puta que os pariu"... que é exigido pela situação e compreensível.
Ele está muito indignado, e autorizou esta publicação.


CARTA À ANITA PIRES

Olsen jr.

Há muito estou para lhe escrever. Demorei-me, todavia, porque acreditava, depois de certo tempo, tomando pé da situação, a senhora iria levar a bom termo a empreitada, isto é, dirigir a Fundação Catarinense de Cultura.

Estive em sua posse. Muito concorrida, acrescente-se. Afinal, era uma mulher, foi guerrilheira. Bonita, inteligente, culta. Tinha uma história para contar. Já havíamos (eu e a minha família) lhe emprestado apoio quando de sua candidatura à prefeitura de Florianópolis, em outros tempos. Nunca lhe pedi nada, não lhe devo nada, a não ser essa admiração por alguém que formou, como eu, fileiras no velho MDB de guerra, no tempo em que isso era sinônimo de esquerdismo, comunismo, anarquismo e não sei mais quanto “ismos” se poderia acrescentar a quem lutou por uma causa que se julgava justa. Portanto o que lhe digo é com a melhor das intenções.

O que me motiva agora foi uma excrescência que li no jornal. O governo do estado, através da FCC, elege uma “comissão” para escolher os escritores que irão a Feira do Livro de Porto Alegre. Estranho, penso. Se o “Governo” vai facilitar uma locomoção até a feira, bancando o veículo, natural seria se protagonizasse uma inscrição e que todos os interessados pudessem fazê-la, afinal, o governo, administra o Estado e não um feudo, de ungidos e diferenciados por apadrinhamento.

Depois, analisando os acontecimentos ligados a minha área, isto é, a literatura, deparei-me com apoteóticas coincidências, senão vejamos: se a senhora, dona Anita Pires por quem ainda tenho grande admiração, observar – basta por as listas dos nomes a sua frente – os membros que compuseram a comissão que selecionou os classificados no Edital Elizabeth Anderle, mais os nomes que integraram aqueles que escolheram os livros que deveriam ser adquiridos na “Lei Grando”(na Cocale – Comissão Catarinense do Livro) para abastecer as bibliotecas do Estado e ainda, esses agora que escolheram os nomes dos escritores para irem a Feira do Livro, nas três listas a senhora irá deparar com nomes que se repetem em todas elas.

Well, esses nomes ficaram conhecidos, grosso modo, como os “Mastins do Péricles”... Mastim, como a senhora sabe, são cães de guarda, existem desde a Idade Média, são subservientes e fieis a quem lhes garanta a sobrevivência e extremamente ferozes com quem ameace essa condição e´”Péricles”, naturalmente nada tem a ver com o político e estadista grego (490-429 a.C) discípulo de Anaxágoras e maior orador do seu tempo ou o criador do “Amigo da Onça”, genial personagem de Péricles de Andrada Maranhão que desde a década de 1940 inspirava o bom humor brasileiro, sempre pondo alguém em uma fria.

Isso posto, acrescente-se a má fé, como diria Sartre, em se “ungindo os agraciados com a ida a Feira do Livro com a indicação da cidade de origem, do nascimento, dos “eleitos” para dar uma ideia de “universalidade” e “abrangência” como se tivesse abarcado o Estado inteiro, assim, o sujeito nasceu em Blumenau (mas mora em Florianópolis), nasceu em Lages (mas está em Floripa), nasceu em Tubarão (mas reside em Floripa) e vai por aí... Puta que os pariu... (alô revisão, é puta que os pariu mesmo)...

O Estado ajuda muito quando não atrapalha.

Estive em Criciúma na semana passada, na Feira de Rua do Livro, pô! Existe uma aversão por esse compadrio que alicia indivíduos, apaniguados pelo Estado, para causas que deveriam ser de ordem coletiva e se tornam aparato de um grupelho, com a exceção de um e outro, inexpressivo de nossa literatura, por mais que insistam.

Por isso tudo, senhora Anita Pires, reveja essa condição, não se deixe dominar por maus aconselhamentos ou então nos explique por que quando se está dentro do poder se tem uma tendência de repetir mal o que se combatia bem quando se estava fora?

Aceite o abraço de quem lhe quer bem e lhe deseja sucesso!

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A crônica do Rubens da Cunha

DESABAFO DE UMA PLACA DE TRÂNSITO

Eu sou uma feliz placa de trânsito. Quer dizer, eu era uma feliz placa de trânsito. Quer dizer, continuo sendo placa, mas não tão feliz.

Eu sou a Proibido Estacionar, muito prazer. Essa é a única coisa que eu consigo falar para as pessoas: “Proibido estacionar”.

Antes, me compreendiam, viam-me, e sabiam que por ali perto de mim não poderia estacionar. Era óbvio e a obviedade obviamente fazia a minha felicidade. Desculpe-me, às vezes exagero nas repetições. É o hábito de uma vida inteira repetindo: “Não estacione”.

Mas, ultimamente, não sei bem o que tem acontecido. De repente, começaram: uma paradinha de leve. Depois, mais tempo, mas o motorista ainda ficava dentro do carro. Depois, só uma saidinha, mas com o vidro aberto, tipo para indicar que era uma urgência, ou coisa assim.

Agora não, agora eles até ligam o alarme, trancam tudo e vão embora. Ou seja, deixam-me muda. Eu já nem existo mais, estou ali como enfeite. Um ou outro recebe uma multa, reclama, sai xingando, achando que tem razão, mas de nada adianta. Parece que eles tão brotando do chão, logo em seguida vem outro, liga o alarme do carro e vai.

Eu grito, peço por favor, imploro, aviso do perigo de ser multado e nada, eu já não existo. Eu tenho uma prima que é bem mais nervosa do que eu, a Proibido Estacionar e Parar. Essa, sim, mandava bem mais que eu, com ela não tinha conversa. Não tinha, que fique bem claro. Esses dias, a coitadinha tava acabada. Perguntei por que e ela disse que eles pararam em fila dupla bem no lado dela.

Quer dizer, parar é pouco, eles estacionaram, um do ladinho do outro. E ela ali, gritando a todos pulmões que não poderia nem parar, quanto menos estacionar. Nada, ela também já não existia. O pior foi toda a fila que se formou, todo o caos que aconteceu e o quanto riram dela. Tipo, até gritaram que ela não mandava mais nada, que tinha de ser jogada fora. Maldade com a coitadinha, anos de serviços prestados, e agora isso, tanto ela quanto eu ignoradas por muita gente.

A minha reclamação é que não é mais um ou outro atrevidinho que tá fazendo isso, é muita gente. Eu sei que está cada vez mais difícil ter carro e andar na cidade, mas se deixarem de obedecer a mim e a as minhas companheiras de trabalho, a coisa toda degringola de vez.

Enfim, uma vez pararam aqui embaixo de mim dois homens e um deles contou a seguinte piada: que era preciso tomar cuidado com os chineses, pois onde tem um buraco eles abrem um mercado. Não estou falando mal dos chineses, eu acho que eles estão certos. Errados estão os motoristas que onde tem uma vaga, um buraco qualquer, mesmo que seja em lugar proibido, mesmo que vá atrapalhar centenas de pessoas, estacionam e ficam, mesmo que eu e todas as outras placas e sinais de trânsito gritemos o contrário. É a barbárie chegando.

Eu vim aqui só desabafar e avisar mais uma vez: algo tem de ser feito, pois, caso contrário, eu vou perder a utilidade. Já tem certas horas que fica todo mundo estacionado mesmo. Fica a dica.

(Anexo, AN, 14/10/2009)

A crônica do Amílcar Neves

E o abalo psicológico, senhores?

A matéria foi distribuída pela BBC em 8 de outubro passado. O título provocante instiga à leitura: “Neto de ex-líder soviético Stalin processa jornal por difamar seu avô”.

Caramba! Já pensaste? Caminhas pela rua e escutas as pessoas dizerem que o teu amado avô, tão dócil e gentil contigo, na verdade não passa de um facínora. Como não haverá de abalar-se profundamente com isso o teu espírito ainda verde, em plena formação? E o teu equilíbrio psicológico, onde irá parar? Acima disso: será que um dia reencontrarás esse equilíbrio ouvindo persistentemente as pessoas destratarem o teu doce avô? Quem não reagiria com bravura e destemor a essa inominável e bárbara agressão?

Pois foi o que aconteceu: “O neto do ex-líder soviético Joseph Stalin abriu um processo nos tribunais russos contra um jornal liberal que ele acusa de difamar seu avô. Yevgeny Dzhugashvilli disse que um artigo na publicação Novaya Gazeta dizendo que Stalin ordenou pessoalmente as execuções de cidadãos soviéticos é uma mentira.” O texto conclui:

“O professor de História Orlando Feges, da Universidade de Birkbeck, em Londres, disse que o caso é bizarro, já que há vários documentos comprovando o envolvimento de Stalin nas execuções. ‘Não entendo por que o tribunal aceitou seguir adiante com o processo’, disse Feges. ‘Desde 1991, centenas de documentos dos arquivos da KGB sobre o assunto foram liberados e publicados’.”

Eugênio, o neto, se daria bem em Santa Catarina. Ainda que os acontecimentos do passado tivessem ocorrido em 1919, ele leria na sentença judicial joias como “O fato é que, independente da veracidade das informações e das respectivas fontes, houve excesso por parte dos réus na forma como [o avô] foi descrito. (…) Não se pode aceitar, pois, que um livro de ficção contenha palavras de desrespeito a cidadão que, de fato, existiu. (…) Qualquer pessoa seria prejudicada psicologicamente ao tomar ciência de que seu ascendente foi tachado com palavras ofensivas. (…) Evidente que os descendentes podem defender a imagem do ente querido já falecido, pois, quem ainda vive, sofre os efeitos das boas ou más qualidades atribuídas aos que já se foram.”

Além de Stalin, estarão salvas as memórias e preservadas as imagens de Hitler, Bush e Médici. E, apoiados na Justiça, poderemos questionar a ocorrência do Holocausto ou da Guerrilha do Araguaia.

(Variedades,DC,14/10/2009)

Refazendo Tito,o jornalista



De 1946 a 1956, meu avô Tito Carvalho foi correspondente do JB e da Asapress na Câmara e no Senado da República, no Rio de Janeiro. Estou com dois de seus cadernos de anotações, que começo a estudar devagarinho, pra selecionar o que haja de interessante nelas.

Ali estão Café Filho, Nereu Ramos, Carlos Marighela, Jorge Amado... Que deverão ser pesquisados, pra ver datas de mandatos, essas coisas... Vai ser um prazer!


segunda-feira, 12 de outubro de 2009

No sopé da serra do Rio do Rastro

Vai ser lançada nesta quinta, em linda edição da Unisul, uma seleção de crônicas (com mais dois contos) do Flávio José Cardozo. Lá na Livros & Livros da Jerônimo Coelho, a partir das 19 horas.

É claro que estarei, ainda mais que já li o livro, por deferência especial do autor, e como sei que os cronistas da city passarão por lá, quero dar um abraço nos "cumpadres" todos... Tou fora da crônica, mas continuo cronista, fazer o quê!


Para tornar o livro ainda mais bonito,o Tércio da Gama fez ilustrações de deixar a gente babando...


E, como vantagem adicional, ótima apresentação do Silveira de Sousa!



No sopé da serra, no cimo da crônica...


Pelo título já se pode deduzir o que vem dentro: as lembranças do autor, que é de Guatá, município de Lauro Müller, região carbonífera, ali na subidinha (no sopé) da serra do Rio do Rastro, um pouquim antes de Orleans, terra do vô Tito Carvalho e de meu pai...

Uma das características das crônicas que faz minhas delícias é a capacidade de dizer muito, de dizer em profundidade, assim, na maior, como se não estivesse dizendo nada importante... Mestre Candido diz que a crônica apresenta a vida ao rés do chão, mas quero explicar melhor: posto dessa forma, pode parecer que a crônica faz coisa desimportante, e não é isso. Ela transforma essa vida ao rés do chão em literatura, e, portanto, a engrandece, nos faz pensar sobre ela, aprofunda as reflexões... para o leitor que quiser fazer isso, é claro.

E vejam só o que Flávio faz nesta crônica, das aprendizagens da infância trazidas para o que ele é, vive e observa hoje:

“Na escolinha primária do Guatá, também aconteceu comigo o que aconteceu com a maioria das crianças de outros tempos: entrou em minh’alma o Hino Nacional. Ele sempre me dá uma comoção sincera, mistura de sentimento da pátria Brasil com memória da pátria Infância – ‘pátria é a infância’ parece que alguém já disse. Por mais triste que o Brasil possa andar, escuto o hino e fico com alguma esperança. Devíamos ouvi-lo toda semana, às segundas-feiras, cedinho.”(p.20)

Perfeito: ao ouvi-lo toda segunda, bem cedinho, ao iniciar nossa semana produtiva, teremos presente a imagem da pátria, naquilo que ela tem de amorável, para nos acompanhar durante os dias...

Nas minhas preferências estão os cronistas do afeto, nestes tempos tão bicudos quanto todos os que os antecederam, mas que adora chafurdar na revolta e na depressão – tempos em que a angústia se sente solta e livre para ser a tônica, junto com o medo. Há um poema do chileno Amado Nervo em que ele diz: “os homens nada esperam/ temem muito os homens”... Pois sou a favor, sempre, de lhes dar motivos para não temer,de lhes dar motivo para nutrir esperança. E encarar a vida com afeto é, nesta avaliação, a melhor maneira de fazê-lo,estendendo-o para o que nos rodeie:

“Me perdoe o próprio Senhor do Bonfim, mas nem Ele chamava mais a atenção do povo que a Banda Santa Bárbara. Singelas são minhas posses neste mundo.Uma delas é essa bandinha tocando aqui dentro.” (p.41)

Em “Da arte de comer melancia”, é lembrada, em minúcias, a maneira como o pai do cronista costumava escolher, preparar, cortar e servir uma melancia... Era assim mesmo que todo mundo fazia, né, cumpadre, mesmo quando já se tinha geladeira – ela era posta a refrescar no tanque cheio de água, porque uma enorme melancia não caberia inteirinha dentro da geladeira... E hoje, que pobreza de tempos!, sou obrigada a trazer apenas uma fatia pra casa, porque moro sozinha, não compro mais melancia inteirinha. E tenho saudades daquelas enormes frutas compridas – agora só as vejo redondas... E só de polpa vermelha, quando às vezes comíamos daquelas de polpa amarela, que o pessoal apelidava de “melancia de japonês”.

E confesso: não costumo ter inveja, não, a não ser de fatos muito importantes. Mas eu, a vida inteira professora de marmanjos universitários, que não dão muita pelota pra figura do professor, fiquei morrendo de inveja de Dona Húngria, assim, com este acento fora de propósito, por esta linda declaração de amor de um ex-aluno... Ainda bem que inveja não mata! A crônica? "Dona Húngria", é claro,que não dá pra resistir a um nome desses!

Vivo repetindo que a melhor forma de aprender e de construir textos é por comparação, em termos de semelhança e contraste. Vejam aqui:

“A Quaresma, não faz tanto tempo assim, começava no primeiro segundo da Quarta-Feira de Cinzas. No exato encontro dos ponteiros, à meia-noite, a orquestra dos bailes carnavalescos sustava a música, e os foliões,contrariados, iam para casa como se lhes tivessem acabado de roubar um doce,sabendo que pela frente tinham uma quarentena braba,de muita reza e abstinência.” (p.63)

Não sou muito mais jovem que o Flávio, mas na adolescência, embora os dias até fossem assim, vidas de Cristo e paixões de Cristo nos cinemas – ou Marcelino, pão e vinho,uma graça – o Carnaval em Floripa, ao menos para a elite local, terminava manhã de quarta adiantada, quando os últimos foliões do Doze e os do Lira saíam dos respectivos clubes e se encontravam na rua, pelas imediações da Praça XV...

E não podia faltar homenagem aos mineiros de carvão, numa bela crônica intitulada “Máscaras”:

“Como esquecer? Daquela diária viagem ao subsolo vocês não chegavam rancorosos. Melancólicos, muitas vezes, mas nunca exibindo ódio. Cumpriam o pesado mergulho com a normal resignação de um lavrador no trato da terra. E,no entanto, que lavra a de vocês! Como esquecer o envelhecimento tão precoce, os poluídos pulmões que aposentavam homens ainda quase crianças, o andar curvado de tantos? “ (p. 75)

E, para fechar essa memória do sopé, coisa boa demax, dois contos de Guatá: “Duelo ao sol” e “Asas”. Não se pode perder, jamais...

domingo, 11 de outubro de 2009

Obrigada, João e Aldir!



Eu tava deitada no sofá, lendo o último Dunning, O último caso da colecionadora de livros. O rádio ligado, baixinho, na Itapema. De repente, João:

Música: Sonho de Caramujo
Autores: João Bosco & Aldir Blanc

Nem menino eu era garotinho
vivia adulto sozinho
eu nunca fui aonde eu ia
andava em má companhia
entrava no livro que lia e fugia .


Neguinho me vendo em Quixeramobim
e eu andando de elefante em Bombaim


Cumpri o astral de caramujo musical:
hoje eu gripo ou canto
não vou pro céu mas já não vivo no chão
eu moro dentro da casca do meu violão.

* * *

Samba, Alberto,é samba... Esta letra é qualquer coisa, fala de mim, também, adulta quando criança, andando de elefante em Bombaim, quando pensavam que eu estivesse em Floripa-Quixeramobim. E a casca de meu violão é meu sofá, com meus livros.
Obrigada, meninos, MUITÍSSIMO obrigada, por saber que somos alguns...