sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Crônica do Olsen

O GUARDADOR DE CARROS

Um dia qualquer, já faz muito tempo, ele apareceu. Foi surpreendente. Ninguém ali na rua tinha conhecimento daquele cidadão e tampouco do ofício que exerceria a partir daquela chegada, tão espantosa quanto abrupta.

Ele chegou, postou-se na calçada como se fosse um velho habitué, seguro de si. Passou a percorrer aquele caminho em frente aos vários restaurantes da região. No começo, foi para se assenhorear do espaço, como fazem os cães e gatos que delimitam o terreno do qual se apropriam, deixando claro a quem interessar que a área tem um dono.

Tentaram afugentá-lo dali. Parecia um corpo estranho, algo que precisava ser extirpado logo. Mas não deu certo. Na manha, como dizem por aí, ele foi levando. Por outro lado, se pensava, ele não iria ser persistente o tempo todo a ponto de se transformar em uma instituição.

Os dias foram passando, mas tão certo quanto dois e dois são quatro, pela manhã, perto do meio-dia, ele aparecia. Postava-se em frente, como que imbuído de uma missão, levava a sério o ofício. Cumprimentava todo o mundo.

Depois, mais atrevido, até insinuava um diálogo, embora para quem o visse de longe, desse a impressão de estar falando sozinho, porque ninguém parava para ouvi-lo. Ah, ele tinha um cacoete. Quando começava a conversar, abanava a cabeça para os lados como se estivesse espantando uma mosca. O gesto era acompanhado com um dos braços que era erguido a altura do pescoço e se movia na horizontal acompanhando a cabeça.

À medida que os sons saiam com dificuldade da boca, o nervosismo era acelerado e, com ele, os trejeitos, compondo uma coreografia de danados. Era poesia tirada de um dos versos de Augusto dos Anjos, um poeta de quem ele jamais ouvira falar.

Os anos também foram amontoando-se. Ele, que jamais faltou a um único dia ao trabalho, teria recebido todos os galardões caso trabalhasse em uma empresa tradicional. Seria um exemplo. Jamais uma doença ou outro motivo qualquer o afugentou do que ele considerava uma obrigação sagrada. Se não o conhecesse, diria que estava pagando uma promessa.

De certa maneira, quando se percebeu que a sua presença era inevitável, passou-se a ajudá-lo. Um dia, lhe dei de presente uma camisa da Lacoste. Era de cor azul-turquesa, xadrez e não sei o porquê, havia caído um pingo de água sanitária na parte posterior, algo quase invisível que me incomodava. Mas ele não deu pelo fato e passou a vestir aquela camisa todos os dias. Quase fiquei com remorso, afinal, era eu o culpado daquela constância. E ele sempre me dizia: “Obrigado, poeta”.

Ele está em frente da minha casa todos os dias. Ganha dinheiro honestamente. É pouco, mas ele sobrevive. Não deve favores para ninguém. Não depende de políticos. Não precisa fazer mesuras para adiantar o lado dele. Agora, também folga nas segundas-feiras, como quase todos os donos de restaurante.

Era torcedor do Palmeiras quando chegou. Mais tarde, alguém lhe deu de presente uma camiseta do Flamengo e ele se tornou ardoroso defensor das novas cores. Outro dia, o proprietário de um restaurante na vizinhança ameaçou de não lhe dar mais café se ele continuasse com aquela camiseta rubro-negra. Ele então, voltou – como amante apaixonado e arrependido – a torcer pelo Palmeiras, onde está até hoje. Flutuação de humor passageira à parte, parece natural quando acontece com os outros. Nós, os durões, não nos permitimos tais concessões.

Hoje pela manhã, antes de sair de casa, fiquei um tempo observando aquele cidadão, pacato, tranquilo, soberano em seus domínios, pouco mais de cem metros de calçada, nada parecia lhe tirar a serenidade. Acenei de longe para ele, fui retribuído com um largo sorriso e aquela expressão que já tinha virado rotina: “Tudo bem, poeta”. Com certa inveja, afastei-me. Se ele ao menos soubesse. Na verdade, o poeta era ele!

(Anexo,AN,16/10/2009)

Nenhum comentário:

Postar um comentário