segunda-feira, 12 de outubro de 2009

No sopé da serra do Rio do Rastro

Vai ser lançada nesta quinta, em linda edição da Unisul, uma seleção de crônicas (com mais dois contos) do Flávio José Cardozo. Lá na Livros & Livros da Jerônimo Coelho, a partir das 19 horas.

É claro que estarei, ainda mais que já li o livro, por deferência especial do autor, e como sei que os cronistas da city passarão por lá, quero dar um abraço nos "cumpadres" todos... Tou fora da crônica, mas continuo cronista, fazer o quê!


Para tornar o livro ainda mais bonito,o Tércio da Gama fez ilustrações de deixar a gente babando...


E, como vantagem adicional, ótima apresentação do Silveira de Sousa!



No sopé da serra, no cimo da crônica...


Pelo título já se pode deduzir o que vem dentro: as lembranças do autor, que é de Guatá, município de Lauro Müller, região carbonífera, ali na subidinha (no sopé) da serra do Rio do Rastro, um pouquim antes de Orleans, terra do vô Tito Carvalho e de meu pai...

Uma das características das crônicas que faz minhas delícias é a capacidade de dizer muito, de dizer em profundidade, assim, na maior, como se não estivesse dizendo nada importante... Mestre Candido diz que a crônica apresenta a vida ao rés do chão, mas quero explicar melhor: posto dessa forma, pode parecer que a crônica faz coisa desimportante, e não é isso. Ela transforma essa vida ao rés do chão em literatura, e, portanto, a engrandece, nos faz pensar sobre ela, aprofunda as reflexões... para o leitor que quiser fazer isso, é claro.

E vejam só o que Flávio faz nesta crônica, das aprendizagens da infância trazidas para o que ele é, vive e observa hoje:

“Na escolinha primária do Guatá, também aconteceu comigo o que aconteceu com a maioria das crianças de outros tempos: entrou em minh’alma o Hino Nacional. Ele sempre me dá uma comoção sincera, mistura de sentimento da pátria Brasil com memória da pátria Infância – ‘pátria é a infância’ parece que alguém já disse. Por mais triste que o Brasil possa andar, escuto o hino e fico com alguma esperança. Devíamos ouvi-lo toda semana, às segundas-feiras, cedinho.”(p.20)

Perfeito: ao ouvi-lo toda segunda, bem cedinho, ao iniciar nossa semana produtiva, teremos presente a imagem da pátria, naquilo que ela tem de amorável, para nos acompanhar durante os dias...

Nas minhas preferências estão os cronistas do afeto, nestes tempos tão bicudos quanto todos os que os antecederam, mas que adora chafurdar na revolta e na depressão – tempos em que a angústia se sente solta e livre para ser a tônica, junto com o medo. Há um poema do chileno Amado Nervo em que ele diz: “os homens nada esperam/ temem muito os homens”... Pois sou a favor, sempre, de lhes dar motivos para não temer,de lhes dar motivo para nutrir esperança. E encarar a vida com afeto é, nesta avaliação, a melhor maneira de fazê-lo,estendendo-o para o que nos rodeie:

“Me perdoe o próprio Senhor do Bonfim, mas nem Ele chamava mais a atenção do povo que a Banda Santa Bárbara. Singelas são minhas posses neste mundo.Uma delas é essa bandinha tocando aqui dentro.” (p.41)

Em “Da arte de comer melancia”, é lembrada, em minúcias, a maneira como o pai do cronista costumava escolher, preparar, cortar e servir uma melancia... Era assim mesmo que todo mundo fazia, né, cumpadre, mesmo quando já se tinha geladeira – ela era posta a refrescar no tanque cheio de água, porque uma enorme melancia não caberia inteirinha dentro da geladeira... E hoje, que pobreza de tempos!, sou obrigada a trazer apenas uma fatia pra casa, porque moro sozinha, não compro mais melancia inteirinha. E tenho saudades daquelas enormes frutas compridas – agora só as vejo redondas... E só de polpa vermelha, quando às vezes comíamos daquelas de polpa amarela, que o pessoal apelidava de “melancia de japonês”.

E confesso: não costumo ter inveja, não, a não ser de fatos muito importantes. Mas eu, a vida inteira professora de marmanjos universitários, que não dão muita pelota pra figura do professor, fiquei morrendo de inveja de Dona Húngria, assim, com este acento fora de propósito, por esta linda declaração de amor de um ex-aluno... Ainda bem que inveja não mata! A crônica? "Dona Húngria", é claro,que não dá pra resistir a um nome desses!

Vivo repetindo que a melhor forma de aprender e de construir textos é por comparação, em termos de semelhança e contraste. Vejam aqui:

“A Quaresma, não faz tanto tempo assim, começava no primeiro segundo da Quarta-Feira de Cinzas. No exato encontro dos ponteiros, à meia-noite, a orquestra dos bailes carnavalescos sustava a música, e os foliões,contrariados, iam para casa como se lhes tivessem acabado de roubar um doce,sabendo que pela frente tinham uma quarentena braba,de muita reza e abstinência.” (p.63)

Não sou muito mais jovem que o Flávio, mas na adolescência, embora os dias até fossem assim, vidas de Cristo e paixões de Cristo nos cinemas – ou Marcelino, pão e vinho,uma graça – o Carnaval em Floripa, ao menos para a elite local, terminava manhã de quarta adiantada, quando os últimos foliões do Doze e os do Lira saíam dos respectivos clubes e se encontravam na rua, pelas imediações da Praça XV...

E não podia faltar homenagem aos mineiros de carvão, numa bela crônica intitulada “Máscaras”:

“Como esquecer? Daquela diária viagem ao subsolo vocês não chegavam rancorosos. Melancólicos, muitas vezes, mas nunca exibindo ódio. Cumpriam o pesado mergulho com a normal resignação de um lavrador no trato da terra. E,no entanto, que lavra a de vocês! Como esquecer o envelhecimento tão precoce, os poluídos pulmões que aposentavam homens ainda quase crianças, o andar curvado de tantos? “ (p. 75)

E, para fechar essa memória do sopé, coisa boa demax, dois contos de Guatá: “Duelo ao sol” e “Asas”. Não se pode perder, jamais...

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