sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Crônica do Olsen





A DOR DOS OUTROS

A vida em condomínios abriga algumas peculiaridades que muitas vezes passam despercebidas dos moradores. O fato de muitas ações serem repetidas diariamente produz uma rotina imperceptível. Assim, é quase certo que encontraremos as mesmas pessoas todos os dias. Algumas mais, outras menos.

Com as crianças, tais particularidades são mais arraigadas. Elas praticamente crescem juntas, meninos e meninas em turmas diferentes. Usufruem da mesma piscina, praticam esporte na mesma quadra, usam o salão de festas para reuniões sociais e desfrutam da churrasqueira com os adultos ou de maneira independente.

Com o passar do tempo, os pais se tornam amigos e passam a ter, inconscientemente, certa responsabilidade pela população miúda. As crianças se conhecem e frequentam os apartamentos das outras e até dormem na casa de uma ou de outra como se o ato representasse uma pequena aventura.

Você só entende o significado disso quando, passados 15 anos, recebe o telefonema de um filho afirmando: “Pai, o Lucas morreu”.

Segue-se um silêncio e, antes que você possa dizer alguma coisa, ouve “o Sky (apelido carinhoso do garoto, provavelmente tirado do filme ‘Guerra nas Estrelas’) era um dos meus melhores amigos”.

Então, cai a ficha e, antes de encontrar algo para dizer, você se lembra deles brincando juntos lá no prédio onde moravam, jogando bola no pátio, ocupando o tempo com o “Banco Imobiliário”, jogando canastra, xadrez, os brinquedos eletrônicos e, depois, mais adultos, a descoberta e paixão pela música. Cada um escolhendo um instrumento e ensaiando.

É, seguem-se todas aquelas manobras pouco sutis de conduzir a aparelhagem para cima e para baixo, no carro de um ou de outro dos pais, da escolha de um lugar para ensaiar, da negociação com a vizinhança. Afinal, daquelas tertúlias musicais bem que poderia sair um virtuose, quem sabe alguém que ficará famoso um dia e poderão dizer: “Puxa, essa gurizada ensaiava lá perto de casa, mas sempre botei fé que dali sairia alguma coisa boa. E não é que eu estava certo!”

Soube que o Lucas tinha apenas 30 anos, não fumava e não bebia, havia casado recentemente, dedicava-se inteiramente à música. Acabara de ganhar uma bolsa para fazer um mestrado em música e a banda dele iria tocar no fim do ano na França. Ele estava animado, no auge do entusiasmo que poderia representar uma promissora carreira. E aí, um enfarte põe fim ao sonho.

Ironia, triste destino, quando nos aproximamos do sonho, ele se esfuma, evapora, some. Permanece, então, a história da luta que foi para buscá-lo e isso justifica uma vida inteira, ainda que se alie à tristeza, a solidão, as dores do que se perdeu pelo caminho.

Meu filho está chorando ao telefone. Imagino o que significa aquela tragédia para todos os amigos deles, os pais do Lucas, Paulo e Gisela da Rosa e os irmãos, Tiago e Paola. O mundo desabando em cima de uma família e as forças do universo mostrando em todos os nossos poros o quanto somos pequenos e vulneráveis aos seus desígnios.

Penso nas “Meditações”, do poeta John Donne, quando diz “A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte da humanidade”.

A dor dos outros explodindo em significações e eu ali, mediocremente, pensando na eleição para uma academia de letras, deus meu, como um homem pode deixar-se corromper por tal papel?

Foi naquela hora, na tarde de terça-feira, que decidi não submeter mais o meu destino a uma minoria de homens de letras. E daí, já despido da glória passageira do Olimpo, como um mortal que acaba de descobrir a verdade essencial, solidariamente, chorei junto com o meu filho aquela perda humana que nenhuma lágrima poderia mais trazer de volta!

(recebida por email)

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