segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Crônica do Felipe Lenhart







Escrever

Por que é difícil escrever? Por que as palavras teimam em escapulir de repente? Muitas vezes estão na palma da mão, adestradas, prestativas e corretas, prontas a pular para o teclado; em outras, ficam deitadas no nosso colo, de onde as pescamos como quem come pipoca no cinema, absortos no texto que flui diante de olhos incrédulos. Mas é fato: elas correm de nossa visão e fogem de nossas mãos como num feito de mágica. Nada entendemos. Uma hora estão aqui, saltitantes e ardendo, e num minuto desaparecem, sacanas. Sapecas e sacanas: os personagens perdem a fala, a descrição do ambiente fica incompleta. Ao mínimo descuido, danou-se: os que no papel falam e sentem e choram fogem para trás da folha em branco, zombam de nossa falta de atenção e se recusam a voltar. A sala, o quarto, a estação de metrô ou a agência dos correios viram lugares frios, sem cheiro e cor, sem vida e música. Por que diabos é tão difícil escrever?

Em certas noites, parece mesmo que a tela do computador debocha de nós. Ela fica fora de foco, o teclado dorme, o branco cega e o texto estaca. É duro quando as palavras, andarilhas do tempo e do espaço, entram em greve e pedem adequado uso e aumento de vocabulário. Porque puxamos da memória sempre as mesmas palavras. Aí, a revolta: erguem-se em armas os as e os is, deitam os emes de cabeça para baixo e tudo fica de pernas pro ar. No teclado, aperta o “d”, surge o “t”. São elas sabotando a máquina.

A situação pode piorar: as letras formam fileiras, braços dados, serifas unidas, em nome do idioma. Nestes casos, a César o que é de César: busca-se na estante um livro grande e empoeirado, recorre-se ao Aurélio. Ele sabe como negociar com os rebelados. Em minutos apresenta um termo novo, uma expressão em desuso e pronto, voltam a formar palavras e frases e parágrafos as letrinhas satisfeitas.

Resolvidas as questões do aumento e do uso adequado, respiramos fundo e seguimos em frente. Voltam a conversar os personagens, música soa no quarto do Joca. Música embala também a discoteca onde Joana dança, na fatídica noite do dilúvio bíblico que vai afogar a cidade inteira e ninguém sobreviverá a não ser Joana. São fábulas que as palavras nos proporcionam.

Pelo menos até amanhã, tudo certo. Mas no novo dia, nova crônica, as palavras novamente irão se rebelar, vingativas. Aí, repete-se o óbvio: por que é difícil escrever?

(Variedades,DC,19/10/2009)

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