quarta-feira, 26 de agosto de 2009

À beira da perfeição



(publicado no blog do Ideias. AN, 29/7/2009)



Há cerca de dois anos, João Bosco fez um show beneficente em Itajaí, e fui assistir. Após o show, simplesmente maravilhoso, com um público muito grande, participante e entusiasmado, fomos ao camarim cumprimentá-lo. Ao me ver, ele que me conhece desde a época da dissertação de mestrado, e sabe do trabalho que faço a respeito de sua obra, franze o cenho - faz isso sempre que me vê - perguntando: "E daí?" Quer obviamente saber o que achei da apresentação. Abracei-o: "Ora, cara, não sei como falar da perfeição".

Ele riu, mas meio constrangido: "Não estava perfeito!" E foi minha vez de rir: "Deu problema de som, mais de uma vez, mas assim mesmo foi uma beleza. E encerrar com 'Linha de Passe' foi o lance de maior exibicionismo que já vi". Ele estava gripado, mas sustentou um show de mais de duas horas, ele e violão, sem nenhum deslize. Não só o repertório era dos melhores, como estava encadeado da forma mais adequada, uma canção ligada à seguinte ou por ritmo, ou por tema, ou por algum daqueles links vocais que ele gosta tanto de fazer, suas "sonoridades". E essa mesma preocupação com a montagem de um produto final bem amarrado, bem encadeado, com uma linha que chamo de "semântico-musical" e que aparece em todos os CDs dele. Assim, só se pode lamentar quem baixa aleatoriamente canções da internet, e perde essa rica significância que se estende além de uma simples e única canção, ouvida fora do contexto geral.

"O nome do cantor e compositor brasileiro João Bosco tem estado ligado aos nomes de seus letristas por 30 anos. E as letras das canções dele - especialmente as escritas por Aldir Blanc - estão, de fato, entre a melhor poesia literária escrita para música popular. (Uma porção dos melhores exemplos vindos do Brasil, também). Mas o senhor Bosco não deixa as letras fazerem todo o trabalho. A despeito do notável jogo de palavras e da festa de imagens expressa nas canções, ele é um performer feroz (...) Como músico ele é completo em si mesmo, o tipo de instrumentista para quem uma banda é quase uma extravagância". São palavras do crítico Ben Ratliff, do New York Times, em 2003, quando de uma temporada de João Bosco em Nova York. Ratcliff vê no compositor brasileiro exatamente as mesmas qualidades que me fazem admirá-lo.

Dois mil e três foi, coincidentemente, o ano em que saiu o último disco de novas músicas de João, em parceria com o filho Francisco, que adotou o Bosco também como sobrenome.

Doutor em teoria literária pela UFRJ, ensaísta das revistas "Cult" e "Bravo", Francisco tem livros de poemas publicados, e foi parceiro de seu pai em três CDs: "As Mil e uma Aldeias", de 1997; "Na Esquina", de 2000; e "Malabaristas do Sinal Vermelho"; o melhor dos três, de 2003. Ouvindo-os em sequência, tem-se uma noção bem clara do aperfeiçoamento de Francisco como letrista, de uma certa "literatice" do primeiro à compatibilidade muito bem entrosada de "Malabaristas", de forma especial na canção-título, lindíssima. Houve alguns discos depois, todos releituras de sucessos anteriores, por ele mesmo ou por outros, inclusive a excelência de "Obrigado Gente", também em DVD, na comemoração dos 30 anos de carreira.

Perfeccionista, João Bosco não admite trazer a público nada que não tenha sido bem pensado, trabalhado, aperfeiçoado em cada detalhe. Declarou-nos ter recebido proposta da MTV para lançar seu show no Acústico - MTV como DVD, e sequer perdeu muito tempo para decidir: não foi pensado para DVD... E assistir ao DVD de "Obrigado Gente" mostra com meridiana clareza o que ele entende como algo lançado para ser DVD: um show que documente para o público a sua imensa capacidade performática, seu pique, seu carisma, ao lado da perfeição do cantor, do instrumentista, dos músicos convidados, da banda que normalmente o acompanha, sem falar da qualidade de suas composições.

Agora, em 2009, seis anos depois do "Malabaristas do Sinal Vermelho", sai mais um CD de inéditas: "Não Vou pro Céu mas já não Vivo no Chão", título tirado de canção em parceria com - pasmem! - Aldir Blanc, chamada "Sonho de Caramujo". Retomaram a rompida amizade, por obra e graça do Francisco, e se declaram este afeto em mais de uma das músicas ("Você É e Sempre Foi"/Meu Par").

Para os saudosistas que lamentam o rompimento que houve entre ambos, dizendo que aquelas eram composições maravilhosas, respondo sempre que, se tivessem continuado compondo juntos, teriam feito coisas muito diferentes, porque as pessoas mudam, notadamente os artistas de qualidade, seres inquietos por excelência. Mas a vida é o que ela é, não o que queríamos que fosse, e esse se refazer, se retomar, se aperfeiçoar, até mesmo mudar totalmente de rumo é que torna interessante e dá valor a qualquer obra.

Com Aldir, aparecem aqui quatro parcerias: "Navalha" (Teu sorriso é uma navalha/que abre meu coração...), "Mentiras de Verdade", "Plural Singular" e a já citada "Sonho de Caramujo" (Não vou pro céu, mas já não vivo no chão/eu moro dentro da casca do meu violão), e nela Aldir brinca com a infinita capacidade de ficar gripado que João possui: hoje eu gripo ou canto. Acredito que os saudosistas vão ficar desapontados: é outra fase de suas vidas, e uma produção bastante diferente daquela que se acreditou ser uma das mais perfeitas parcerias da MPB.

A canção que abre o CD, chama-se, para meu divertimento, "Perfeição", parceria com o filho Francisco. E é mesmo uma graça! E com Francisco há mais: "Tanto Faz", "Desnortes", "Tanajura" e "Alma Barroca". Com o crítico, tradutor e letrista Carlos Rennó, "Pronto pra Próxima" e "Pintura", e Nei Lopes, sambista carioca, comparece com "Jimbo no Jazz". E fiquei encantada ao encontrar canção de Serafim Adriano, compositor da Mocidade Independente de Padre Miguel falecido em 2003: "Ingenuidade".

E a perfeição existe, sim, num disco doce, de extrema musicalidade, costuradinho, lindo, lindo, lindo!

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