domingo, 30 de agosto de 2009

Paralelas que se encontram


(a foto é do DC- Cultura)


Esse tipo de livro costuma ser chamado de Dispersos, por recolher e publicar textos de muitas espécies, publicados sob formatos variados, mas normalmente na imprensa. A este, o autor intitulou Vias paralelas. É um título adequado, mas ao mesmo tempo paradoxal: apesar de às vezes tão díspares e desencontradas, são produções de determinados momentos, saídas de uma mesma mente inquieta, conduzindo para a cada vez maior competência redacional de um autor. São, pois, paralelas, sim, mas paralelas confluentes, e talvez se encontrem justamente no infinito [da criação], o que não é negado pela matemática.

Neste volume, parte da Coleção ACL - Academia Catarinense de Letras, da qual Silveira de Souza faz parte, ocupando a cadeira no. 33, reúnem-se poemas, crônicas, traduções e comentários,comentários estes que receberam o nome de ‘Registro’. Dentre eles, as memórias de Silveira de Souza de quando trabalhou com meu avô em seu jornal: ‘Tito Carvalho e o Diário da Tarde.’ É claro que me falou muito especialmente ao coração, já que se refere a época em que eu não estava morando aqui, e preenche lacunas da lembrança.

João Paulo Silveira de Souza, mais conhecido como Silveirinha , é contista de talento. E contista parcimonioso, que demora para publicar, só lançando um livro quando sua ânsia de perfeição se der por satisfeita. Se isso, por um lado, nos priva de um convívio mais continuado com suas narrativas, por outro lado faz com que nos deparemos com contos irretocáveis. Seu livro mais conhecido é “Cavalo em chamas” (Edição da Ática e FCC), que fez parte da lista da UFSC, lista nem sempre tão bem contemplada.

Silveira de Souza é, além disso, um bom cronista, como o comprova no livro Janela de Varrer (Bernúncia, 2006), no qual crônicas do tipo que Lauro Junkes costuma chamar cronicontos dividem espaço com contos muito bons, como ‘ Eu e minha mãe’, com seu toque de fantástico.

Em “Vias Paralelas”, porém, o seu olhar atento e sensível passeia pelas artes plásticas – Vecchietti, Hassis, Tércio daGama -, pelas memórias do Grupo Sul, do qual fez parte; por resenhas, orelhas de livros e lembranças de outros escritores: Lindolf Bell, Júlio de Queiroz, Hugo Mund Júnior e vários outros.
Não lera eu ainda os poemas do Silveirinha, e encontrei aqui alguns encantadores, como este:

Entediada lembrança de Baudelaire

Face rotunda, gestos de oca liderança,
Falava o boneco de cera,
Borrão lilás
Na usada tv sobre a prateleira.

Certo, ninguém prestou a devida atenção.
O cheiro forte de carne e cerveja impregnava
o ar da churrascaria e as vozes
dispersas em grupos em cada mesa
zumbiam indistintas entre risadas ou tosses.

“Um rei num país chuvoso!”
disse alguém ali perto. Claro, sim, claro,
não deixava de ser uma verdade.
A chuva despencava lá fora
sobre o asfalto da BR entre espessa neblina.
Eu disse ao garção: “Desta vez
o Vasco leva o campeonato”,
ele riu duvidando, abriu outra cerveja.

“Um país chuvoso, que droga!”
Un pays pluvieux, riche, mais impuissant.
Podíamos pressentir a legião de homens famintos
morrendo como ratos diante do balcão.
(p. 45)

Agrada sobremaneira a parte final, de ‘Exercícios de tradução’, com trechos da Filosofia da composição do Edgar Alan Poe, os (Des)Aforismos de Kafka, e poemas de autores de língua inglesa e alemã. A tradução de Kafka foi feita também do alemão, como se recomenda hoje, e os poemas traduzidos trazem ao lado a obra original, para que nela se possa perceber o ritmo e a sonoridade – ou, caso se desconheça o idioma, se possa agradecer ao tradutor por colocar essa beleza a nosso alcance.

Aos 76 anos, Silveirinha faz convergir suas vias/vidas paralelas, a demonstrar que cada palavra escrita ao longo da existência vai concorrer para a formação do escritor, assim como os livros que lê , as pessoas que conhece, os mundos semelhantes ou diversos do seu que se propõe a visitar – mesmo que apenas através da palavra escrita.

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