domingo, 27 de setembro de 2009

Crônica do Mário Pereira



Indiana Jones de livraria

Na amarelada página de rosto, a delicada assinatura da dona original do exemplar, e uma informação: “presente de minha amada irmã G. no Natal de 1941”. Quem terá sido aquela Maria Ângela da assinatura?

Há muito tenho por hábito vasculhar essas livrarias que vendem livros usados, conhecidas como sebos. Com a determinação de um Indiana Jones na busca da arca perdida ou da caveira de cristal, vou à luta para resgatar livros sepultados pelo tempo, mas vivos na memória. Enfurno-me em porões mofados. Arfante, escalo carcomidas escadas que conduzem a sótãos poeirentos. Encaro hordas de ácaros selvagens. Sou emboscado por baratas. Troco sopapos com traças famintas. Esgueiro-me por estreitos desfiladeiros entre prateleiras oscilantes que podem desmoronar a qualquer momento. Às vezes, volto dessas expedições arqueológicas coberto de poeira e de mãos abanando. Outras, em triunfo, abraçado a um tesouro.

Certa feita, no Rio, eu emergi de um porão com um exemplar de Tarzan, o Terrível. Não era uma edição qualquer das aventuras do nobre selvagem branco em recônditas florestas e savanas africanas na companhia da macaca Chita, de Tantor, o elefante, de Numa, o leão, e toda aquela bicharada. Era, nada mais, nada menos, uma edição de 1959 da Companhia Editora Nacional em tradução de Monteiro Lobato e com ilustrações coloridas de Manoel Victorino.

Edgar Rice Burroughs foi um maravilhoso contador de histórias. Sem nunca ter posto os pés na África, escreveu 22 aventuras do homem-macaco nela ambientadas. Quem nunca leu um de seus livros de Tarzan não sabe o que perdeu. O nosso Monteiro Lobato, cujas histórias e personagens até hoje encantam as crianças, foi um exímio tradutor. Ainda sei de cor o começo de Tarzan, o Terrível: “Silenciosa como sombra, a grande fera deslizava dentro da noite pela floresta escura, de cabeça baixa, um luar verde nos olhos, a cauda em cautelosa agitação. Era a imagem viva dum bote engatilhado”.

Na minha longa carreira de Indiana Jones de “sebos”, contabilizei outras façanhas dignas de registro. Certa feita, eu extraí de sob uma montanha de catataus jurídicos, um exemplar da edição de 1940 de E o Vento Levou, de Margareth Mitchell, livro que, durante décadas, foi o mais vendido do mundo, perdendo apenas para a Bíblia. A saga de Scarlett O`Hara durante a Guerra da Secessão dos Estados Unidos jamais perdeu seu poder de sedução. Nem no livro, nem no filme famoso com Vivian Leigh e Clark Gable. “Scarlett O`Hara não era bela; os homens, porém, só o notavam quando já subjugados pelo seu encanto”...

Na amarelada página de rosto, a delicada assinatura da dona original do exemplar, e uma informação: “presente de minha amada irmã G. no Natal de 1941”. Quem terá sido aquela Maria Ângela da assinatura? Moça ou velha, bonita ou feia, casada ou solteira? E que tipo de mulher se esconderia sob aquele floreado G? Livros usados instigam-me a imaginação não apenas com as histórias que contam, mas também com as que ocultam.

Como insaciável devorador de biografias, romances reais de vidas idas e vividas, eu festejei os resgates de A Vida de Disraeli, de André Maurois, e de Fouché, de Stefan Zweig. Houve também descobertas de livros de que nunca antes ouvira falar, mas que se revelaram tesouros que hoje ocupam lugares nobres nas minhas prateleiras. É o caso de um humilde livrinho de poucas páginas, em edição quase amadora, intitulado As Mais Belas Palavras, uma seleção de trechos dos discursos de escritores que receberam o Prêmio Nobel de Literatura, feitos durante a cerimônia de entrega. Releio-o sempre. Traz palavras que ensinam, inspiram e consolam.

Para que confiram, transcrevo de graça para vocês um trecho da fala de Pablo Neruda quando aceitou o Nobel de Literatura de 1971. “Não existe a solidão absoluta. Todos os caminhos levam ao mesmo ponto: a comunicar aos outros homens o que nós somos. E é necessário atravessar a solidão e as dificuldades, a falta de comunicação e o silêncio para chegarmos ao recinto mágico e podermos dançar desajeitados, ou cantar tristemente, mas nesta dança e nesta canção perpetuamos o mais antigo ritual da consciência: a consciência de sermos humanos e de acreditarmos num destino comum.”

Pensem nisso, enquanto eu lhes desejo uma excelente semana e saio de cena.

(Donna,DC,27/9/2009)

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