quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Crônica do Amílcar Neves





E não é lá em casa

Imaginemos um país. Pode ser de ficção mesmo, um país de mentirinha, para facilitar o exercício e liberar a imaginação.

Imaginemos um país em que ex-autoridades do alto escalão escrevam ao presidente da república pedindo que use seu cargo para mandar suspender investigações criminais sobre torturas efetivamente cometidas. Ex-autoridades à esquerda e à direita, da situação e da oposição, independente de preferências ideológicas, pressionando o presidente do país para que atropele o poder judiciário, ignore os direitos civis e humanos, e jogue para debaixo do tapete a apuração de crimes e abusos perpetrados por funcionários públicos no exercício do cargo: ou seja, em suma, o Estado violando a Lei, o que não é admissível em hipótese alguma - violando-a ao patrocinar o arbítrio e violando-a ao advogar o esquecimento e o perdão tácito.

Imaginemos agora um país (pode ser o mesmo país de antes, ou não; talvez, para não ficar muito pesado a ponto de não parecer real, pensemos em um país fictício diferente), um país que não disponha de um sistema público de saúde. Não se trata, perceba-se, de uma assistência médica e hospitalar deficiente, ineficaz e corrupta, mas, sim, de ausência total e completa de uma estrutura pública de saúde, de tal forma que somente terá acesso à saúde e direito à vida quem puder pagar por um plano privado de saúde, quem estiver trabalhando e dispuser de renda suficiente para bancar o luxo de médico e hospital.

Imaginemos então um país (o mesmo de antes, ou um terceiro) em que o seu presidente receba, em média, 30 ameaças de morte por dia e não tenha a aprovação nem de 50% da classe média, apesar de eleito recentemente.

Imaginemos um país anglo-saxão com um presidente negro...

Barack Obama recebe quatro vezes mais ameaças de morte do que o deplorável George W. Bush recebia; conta com 80% de aprovação na União Europeia e Turquia; vê 46 milhões de concidadãos sem qualquer – qualquer – cobertura de saúde, o que leva à morte, em média, 44.789 trabalhadores (não desempregados nem vagabundos) todo ano. Na sexta-feira passada, sete ex-diretores da CIA, de administrações republicanas e democratas, pediram-lhe por carta que revogasse a investigação criminal sobre métodos de interrogatório que foram além das diretrizes, já draconianas, impostas por Bush.

Parece, enfim, que algo está errado – e não é lá em casa.

(Variedades,DC, 23/9/2009)

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