segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Se eu pudesse..., de Felipe Lenhart

Se eu pudesse, confesso que me dava o direito de deixar em branco este espaço que me cabe no caderno Variedades de hoje. Ainda melhor que isso somente se houvesse a possibilidade técnica de trocar o texto que porventura eu apresentasse por uma mancha preta que ocupasse toda a coluna aqui no canto da página, de alto a baixo, nesta segunda-feira de feriado nacional e tédio invencível.

Se eu pudesse, pedia aos meus editores, que me leem antes dos outros, uma folguinha de um dia, um descanso não remunerado de 24 horas, um refresco em meio às vicissitudes do início desta semana trovejante, apenas para que eu não precisasse me explicar, me esforçar, me contorcer em busca de uma crônica com membros, tronco e, principalmente, cabeça. Porque, se eu pudesse, garanto que ficaria em silêncio.

Se eu pudesse, a verdade é que hoje eu nem saía nem de dentro de casa, permanecia aqui meio escondido, meio aflito, meio resfriado, meio dolorido, meio perdido no tempo e no espaço, soçobrando na ressaca da história. Melhor ainda: ficava no quarto, deitado na cama, olhando filmes na televisão, lendo revistas, jornais e livros, curando do buraco no estômago que o refluxo ajuda a cavar. Todo esse esforço dispersivo para não ter de se refugiar na caverna da memória.

Mas a vida não permite tais ficções, nem a realidade combina bem com o sonho, o desvario que eu gostaria que se manifestassem hoje – a vida e a realidade impõem que se siga adiante sempre, apesar dos tropeços, dos erros e mesmo das vitórias.

Portanto, hoje terei de acordar, vestir-me, comer, ler os jornais, olhar lá fora pela janela, assistir aos telejornais do meio-dia, almoçar sem pressa, ouvir no rádio os debates esportivos ainda sobre a vitória do Brasil na Argentina e a classificação à Copa do Mundo, dormir a sesta, despertar renovado, ler um livro, sair para caminhar, fazer exercício físico, ser surpreendido pelo crepúsculo, ver chegar a noite...

Mas não tem jeito: na hora de dormir, o bode falante se deitará ao pé da cama. Ele dirá que está ali para me ajudar, pois se alimenta das más recordações que frustraram algo maior e mais bonito. Para não me deixar sozinho, virá me visitar toda noite, até que acabe a comida indigesta de que tanto gosta. Aí, me deixará, porque estarei em paz.

Se eu pudesse, hoje seria 7 de setembro de 2010, e o bode há muito teria morrido de fome.

(Variedades, DC,7/9/2009)

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